Desabafo de um motard que queria sua moto customizada

10 Abr 2019 11:09 - 10 Abr 2019 11:21 #1 por tunda_de_laço
Tenho uma CG 125 Today, 1990, prata.
Comprei por uma bagatela!
Não é por menos, pois chamar aquilo de moto era exagero.
A coitadinha tava ruim. Peças faltando, tampões laterais presos por presilhas de plásticos (os infames "enforca gato"), carenagem rachada composta por pedaços de motos diferentes, tanque amassado e com engates refeitos com "massinha", metade dos adesivos faltando, guidão com travessa, enfim, uma série de problemas causados por falta de cuidado.
Peguei essa motinho pois precisava de algo barato pra ir trabalhar, ir na faculdade, e para as voltinhas do dia a dia.
Paguei a vista, transferi e botei a tal placa nova. Sem problemas na vistoria apesar dos apesares.

Acabei transformando ela num projeto. Comecei a restaurar a motinho que ganhou o apelido de Yesterday (afinal, de Today ela não tinha mais nada).
Fui investindo o pouco que dava. Contei com a ajuda de amigos que, felizmente, também eram excelentes profissionais na área de mecânica.
Consegui todo o kit de carenagem novinho, só que na cor errada. Acabei decidindo levar história adiante e trocar a cor dela pra preto, fosco.

Desmontei toda ela num final de semana. Tirei a ferrugem, passei um fosfatizante, repintei o quadro. O tanque perdeu as infames "massinhas", foi reformado, repintado. Encapei o banco, troquei manoplas, manetes, retrovisores, cabos. Lubrifiquei a correia, troquei o protetor também, o filtro de ar foi substituído por um esportivo, o carburador, por consequência, foi recalibrado, afinado como um violão seria, pra tocar a nota certa com o filtro novo.

O projeto foi crescendo e fui contando com uma ajuda aqui e ali da família, de conhecidos. Muita gente foi se empolgando com o projeto. Minha esposa participava ativamente comigo, colocando a mão na massa! Apertava parafusos aqui e ali, segurava a lanterna enquanto eu estava deitado num skate velho lidando com partes de baixo do banco e parte inferior do quadro.

O farol traseiro foi substituído, o protetor de placa também. Os piscas estavam tortos e foram alinhados. A bateria teve que ser trocada no meio do caminho, já estava na "capa da gaita" como dizemos aqui na minha região.

A 125 já chamava a atenção por onde passava.

Toda reformada, como nova, tava na hora de levar pra vistoria. Eu havia passado semanas antes do CRVA da minha cidade. Tirei todas minhas dúvidas, a funcionária que me atendeu foi bastante prestativa anotou tudo que eu precisava num papel.

Imprimi a tal GAD para pagamento, baita facada por sinal. Paguei. Tirei as cópias. Levei a moto pra nova vistoria. Aí a odisséia começou...

Seria uma história longa demais, mais longa do que já é, por isso vou tentar resumir. O fato é que tive que passar mais três vezes pelo atendimento do CRVA, sempre faltava algo, sempre uma taxa nova aparecia... Quando, finalmente, na terceira vez, após mais filas intermináveis, fui atendido por um dos três funcionários responsáveis por atender um município da região metropolitana de POA, com 60 mil habitantes, consegui chegar na vistoria. A máquina de cartão era só enfeite. Não aceitavam débito. Tive que sair no meio do atendimento pra sacar no banco (eu tinha sete mangos na carteira, era pra tomar um refri na saída), voltar, pegar nova senha, nova fila, pagar, e tentar um "encaixe" para vistoria.

Cheguei no CRVA na hora que abriu de tarde, 13:30. Fui encaminhado para vistoria as 14:12. Fui chamado as 15:40 para ser informado de que a moto foi reprovada. Faltavam os adesivos originais.

Demorou pra cair a ficha. Eu havia feito uma vistoria havia dois meses, ganhei a placa nova e tudo, com uma moto caindo aos pedaços, com guidão irregular e com apenas metade dos adesivos, a outra metade pendurada e rasgada. Agora, com a moto reformada, ela tinha sido reprovada. E mais, precisaram de aproximadamente duas horas e meia para me informarem dessa obviedade.

Reclamei. Apelei para o bom senso. Trabalhei quatro anos em órgão público. Sei o que é probidade. O funcionário tem que seguir a lei. Não concordo com essa lei, mas sei que é obrigação do funcionário. Mas, por que duas horas e meia pra me dizer isso? Por que me fazer pagar as horas que precisei faltar em meu trabalho para me dizer algo tão óbvio? Por que no momento em que eu cheguei com ela já não tiveram a humanidade de me dizer "mano, essa moto não vai passar não. Falta adesivos."?

Nessa tarde que passei observando o trabalho desse CRVA vi outros exemplos de falta de bom senso, de humanidade. Funcionários que não são vítimas do "sistema" como alegam ser, tal como quem depende do bendito sistema é. São sim parte integrante, tornam-se o sistema. Sendo frios, dispensando o bom senso. Sendo máquinas.

Quando argumentei sobre o absurdo de toda aquela história, da abordagem feita, da falta de coerência, recebi a segunda rasteira: "tua moto igual não ia passar pois tu tem que verificar o hodômetro".

...?

Hodômetro, meu velho? Tu andou com minha moto quando?

Saí de lá derrotado. Não sou mal educado. Não ofendi ninguém. Não ergui a voz. Deixei dito que não concordava, que faltou bom senso, e fui embora. Na saída o funcionário me diz, sei lá se por remorso ou o que, "mano, põe qualquer adesivo aí, só pra tirar a foto, depois pode arrancar".
Eu: "Qualquer adesivo?"
Ele: "É... o original né"
Eu: "O original... de uma moto com 29 anos..."
Dei partida. Fui no meu amigo, que acontece também foi o mecânico que me acompanhou em todo o processo. No caminho, hodômetro funcionando como sempre. Relatei pra ele tudo que havia ocorrido. Ele conhecia o dono do CRVA e o pessoal da vistoria. Foi lá trocar uma ideia. Questionar a questão do hodômetro.

Chegando lá recebeu a informação de que o pedido para verificação do hodômetro é padrão.
Se é padrão, por que o funcionário sublinhou no papel, dizendo que não era só o adesivo o problema?
Resposta do responsável: "Isso também é padrão".

Moral da história: estou mais irregular do que quando andava com ela sem o documento na cor certa, pois tive de assinar um documento de ciência de que a moto está irregular e de que tenho 30 dias para providenciar as alterações necessárias. Fui punido por tentar fazer o certo. Pela lógica do CRVA eu estava mais certo quando andava com um ferro-velho, naquela época não tinha problema, e sabe por que? Porque o mais importante estava lá: "CG Honda" no tanque e "Today" na rabeta.

No Brasil é crime não fazer propaganda da montadora. É questão de "segurança" que uma moto tenha "adesivos identificadores". "CG Honda" e "Today" são runas antigas que concedem uma aura mágica protetora ao tanque e rabeta da moto, blindando o piloto de acidentes que poderiam ser fatais e auxiliando a polícia no combate ao crime! Salve, Salve, marcas registradas!

Ora, se um policial me parar, saberá que moto é pela consulta da placa! Meu número de chassi está inalterado, minha placa conforme a lei (inclusive com o tal QR Code), meu documento contém todas as especificações da moto. Quer dizer que se eu colasse um adesivo escrito "Kawasaki Ninja" minha CG irá se transformar na icônica superbike em um passe de mágica? Quem dera fosse assim, não?!

Graças a Deus ainda não normatizaram os calçados! Pois pensem amigos, são agora meus meios de transporte. Não tenho a nota fiscal pra provar que meu All Star vermelho é meu, e como a etiquetazinha da marca já caiu, como iriam identificar que esse é um All Star Original? Eu seria um perigo pra sociedade! Minhas chances de tropeçar aumentaram 65.7%, estaticamente falando.

Eu não me considero mais que ninguém. Não estou acima da lei. Mas um homem deve ter moral e saber traçar uma linha, a qual não deve ultrapassar, baseada em sua humanidade. Se o CONTRAN, que por sinal nem órgão legislador é, mas sim conselho, lançar uma portaria (que por sinal não é lei) dizendo que é proibido virar cambalhota pois tu pode quebrar o pescoço, quem seria louco de obedecer?

Mas sabe como é, a gente finge que faz parte o processo. De que decidimos alguma coisa. Mas não tem nada disso, não. Democracia é o sistema onde poucos tem o poder da fazer muitos acreditarem que tem poder.

Hoje vim pro trabalho, a pé. Vou acertar as horas que gastei no CRVA com meu RH. Vão ser retiradas do meu banco de horas (já fiz uma porrada de hora extra no meu trampo). No caminho passo por carros de som com propagandas de promoção da farmácia no último volume, carros totalmente adesivados com propagandas, um Vectra com um discreto "vectra" escrito na traseira, quase imperceptível, porém dentro da lei! Uma XLX caindo aos pedaços com placa nova, ruas esburacadas, sinaleira de pedestre queimada, moradores de rua dormindo nas fachadas das lojas ainda fechadas, os postes da cidade com lâmpadas de LED e capa laranja, obeliscos à inadimplência do município no pagamento da iluminação pública... mas no fundo eu sei que tudo está bem, pois sempre haverão os paladinos da justiça trabalhando sem parar para o DETRAN-RS, impedindo motos sem adesivo de circular! Sempre haverão os magos do CONTRAN definindo portarias com poder de lei (?) para proteger os brasileiros de todos os “motards” que querem subverter a ordem e o progresso com suas perigosas motos customizadas!

Obrigado pra quem tirou o tempo pra ler esse desabafo. Espero que um dia nos sejamos donos de verdade das nossas próprias motos.

P.S.: Acessei o site do CONTRAN pra me informar sobre esse monte de portaria que inventam, o certificado digital do site tá expirado e a conexão não é segura. Ironia...

P.S.: Desculpas a todos os funcionários públicos que tentam conservar sua humanidade, vocês são heróis. Não estão todos no mesmo saco, felizmente.

Abraços.

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